Mesa Elétrica


Silvana Righi

O início foi sutil. Uma porta abria ali, uma fechava aqui. E noite que seguia. Oliver tinha o sono mais pesado que o de Chloe. A mulher do escritor despertava com barulhos repentinos que estavam se manifestando no apartamento dos dois. Ela ficava em estado de alerta e acordava o marido, mas ele não dava ouvido. Era cético.
Os porta-retratos alinhados cuidadosamente sob o aparador de vidro foram caindo um por um, como efeito dominó. O estrondo foi suficiente para acordar Oliver, pela primeira vez ele se assustou e de um certo modo até questionou suas crenças, ou melhor, suas não crenças.

Chloe não era mais a mesma. Se assustava por tudo, sempre esperava o pior e incomodava o marido falando que poderia ser o espirito de sua avó querendo se comunicar. O escritor já estava com um pé na neura da esposa. Não acreditava que fosse um fantasma, mas aqueles barulhos e a inquietação da amada lhe afetavam. Em uma noite o escritor encontrou um contrato ainda não assinado jogado no chão e sua mesa bagunçada. Aquilo mexeu com ele.

O casal dormia tranquilamente quando o piano tocou sozinho. Piano de Oliver. Que antes de ser um sucedido escritor foi um músico fracassado. Naquele momento ele já estava com os dois pés na neura de Chloe. Tiveram uma reunião com o padre da paróquia do bairro, ele chegou até ir na casa e molhou os cantos do luxuoso apartamento. Nada adiantou. As manifestações continuavam. Foi então que a esposa resolveu procurar uma ajuda mediúnica. O marido duvidou que ela encontraria uma solução, mas a apoiou. Não o suficiente para ir junto.

Mesmo Chloe participando de passes, preces e palestras, o barulho continuava a atormentar a vida dos dois. Eram noites mal dormidas, dor de cabeça e até os cachorros do casal já não eram mais os mesmos. Certo dia, a mulher entrou em casa suplicando que o marido a acompanhasse no tal centro espirita. Na última sessão, ela descobriu que uma entidade procurava por ele. E só com a ida dele na associação Kardecista as coisas iriam ser resolvidas.

A sala era pequena, uma luz azul forte e uma mesa no centro rodeada por cinco pessoas. Entre elas, o escritor. Todas de mãos dadas. Algumas orações para iniciar, vem espirito, vai espirito e de repente ele vem. Ele, o rockstar Greg McGuire. O músico falecido nos anos 90 era o principal objeto de estudo de Oliver. Foi assim que ele consolidou sua carreira de escritor, escrevendo a biografia do cantor.

Greg McGuire foi um talentoso guitarrista e líder de uma famosa banda de Rock chamada Nine Knives, faleceu aos 27 anos no Hotel Chelsea em Nova York. Overdose de heroína. Teve uma curta e intensa vida, cheia de acontecimentos conturbados. Uma carreira com altos e baixos movida pelo clichê sexo, drogas e Rock’n’Roll. Oliver narrou detalhadamente a polêmica vida do cantor em 483 páginas. O livro foi aclamado pela crítica e campeão de vendas.

A mesa central era balançada com fúria, os médiuns olhavam sem entender nada. Nunca tinham presenciado uma manifestação tão forte e poderosa. Foi quando uma voz de outra dimensão começou a brigar com o cético escritor. Entre muitos xingamentos, o cantor se queixava que não tinha paz e não conseguia encontrar a luz porque as coisas no plano terrestre não estavam esclarecidas. Que a vida dele tinha sido contada de uma forma completamente errada. Gritava ao dizer que o escritor se baseou em boatos para vender livro.

Greg começou querendo esclarecer sobre o caso da sex tape que foi roubada e divulgada. Disse que nunca lucrou com ela e que era uma afronta o escritor acusa-lo de ter feito uma estratégia de marketing em cima de algo tão pessoal. Aproveitou para esclarecer que não fez uma transfusão total de sangue para largar o vício em substancias psicoativas e falando nisso, negou que tenha injetado heroína na bunda.
As pessoas ali reunidas estavam incrédulas com a presença do músico. Oliver não conseguia responder nada. Nem piscar. E o falecido não parava de reclamar.
– Eu nunca comi morcego, cara! Era uma brincadeira. Também não furei e escrevi Penny na minha barriga com um caco de vidro. Foi a Amy que escreveu em mim – retrucava o morto.
Toda energia do lugar tinha sido sugada e naquele momento parecia que só estavam Greg e Oliver na sala.
E o guitarrista seguia na sua defesa. Com fúria falava que não bateu em um paparazzi na Sunset Strip. Das tantas vezes que foi preso todas foram injustas. E a ladainha de salvação continuava.
– Não agredi nenhum jornalista e não dei um soco no Mick.
– Não depredei nenhum quarto de hotel. Muito menos me joguei de um telhado durante uma turnê.
– Nem bebi tanto assim. Nunca usei muita droga.
Os espiritas já não conseguiam mais controlar a situação. Era um discurso de raiva que não acabava nunca. Oliver, imóvel, ouvia.
– Se você não reparar a merda que escreveu eu jamais vou lhe deixar em paz! Reescreve aquilo, seu idiota. As pessoas precisam saber quem eu sou, quem eu fui de verdade – berrava o rockstar.

Silêncio total. Os médiuns voltaram para si e ninguém lembrava de nada, exceto Oliver, que de tão atordoado, não conseguia sair do lugar. Recuperou o fôlego foi até em casa e assinou o papel que havia caído da mesa em uma das noites de terror. Horas depois, entregou o papel para um executivo e os dois selaram o acordo com um aperto de mãos. Oliver tinha acabado de vender a biografia de Greg McGuire para a Netflix.

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Silvana Righi

E-mail: righilealsilvana@gmail.com

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