Vermelho Vivo


Silvana Righi

O verde do olho direito de Bowie no cartaz contrastava com o roxo da parede úmida do porão em que Isabel vivia. Fazia dois anos que ela estava morando em Londres para trabalhar com moda, dividia o local que ficava em Camden Town com uma irlandesa e um dinamarquês. A relação entre eles era restrita à boa convivência, ela não sabia muito sobre eles e também nem fazia questão em saber. Isabel já tinha amigos, mas devido a atual situação em que o Brasil se encontrava, eles estavam espalhados pelo mundo. Tinha um que estava em Londres, mas era difícil conseguir tempo para visitá-lo.

Ela se dividia em dois trabalhos entre um pub que ficava na King Road e uma butique de moda punk. O dinheiro não era muito, mas pelo menos as coisas na Terra da Rainha estavam bem mais seguras que no País do Futebol. Fazia pouco que o Brasil tinha conquistado o tricampeonato na Copa do Mundo. Por mais que o espírito fosse comemorativo, o clima ainda era pesado. Muito pesado. Era chumbo. Ela sentia falta de sua pátria mas a frenética Londres pós contracultura tinha conquistado seu coração.

Naquele sábado, Isabel acordou com muita dor de cabeça, sem vontade para trabalhar e sair de casa para enfrentar o inverno inglês. Na noite anterior ela tinha sido extasiada por uma apresentação do Yes, no Blitz Club. O show foi aberto por um cara de óculos coloridos e uma roupa total Glam Rock, era Elton John já mostrando sua irreverência. E por falar em irreverência e excentricidade, foi ali em que ela conheceu uma brasileira e de cara já virou sua melhor amiga. Uma mulher com cabelo louro e liso, corpo longilíneo que calçava um par de botas prateadas de plataforma. Um colega de trabalho apresentou Isabel para a brasileira. Ele falou que ela era cantora, que inclusive fez parte do Tropicalismo. Mas ela não a conhecia.

No Brasil, Isabel não assistia concertos musicais, muito menos frequentava os festivais de música. Nasceu no interior do Rio Grande do Sul e o acesso ao entretenimento era coisa de gente privilegiada. Tudo mudou quando ela foi morar em Londres e conheceu The Who, Led Zeppelin, Sex Pistols e claro, seu Deus maior, David Bowie.

Ao conhecer a cantora das madeixas douradas, Isabel percebeu sua loucura misturada com uma certa bondade, que ela jamais conseguiria descrever. A mulher, como boneca Emília, tomou uma pílula e tagarelou a falar. Contou que queria ter sido um Beatle, que conversava com animais e que até já tinha visto um disco voador, mas que na época pensou que era o Peter Pan. Isabel e ela tinham muita coisa em comum. Ambas mulheres ocupando seu lugar no mundo empunhando atitudes de liberdade e originalidade.

Depois de longas conversas, doses e drops, Isabel confessou que tinha o sonho de ser figurinista e por isso tinha se mudado para o Reino Unido, já a mulher falou que estava de passagem pelo país com o intuito de curar suas mágoas, porque ela tinha sido convidada a se retirar de sua própria banda. Ela estava se reinventando. Entre lástimas e risadas uma amizade foi formada.

Naquela manhã de sábado preguiçosa em que Isabel lutava contra o sono e juntava forçar para levantar, alguém bateu na sua porta. Ela pode ouvir que tinha uma pessoa nas escadas externas que davam na porta da sua casa. Achou que era algum colega de quarto que tinha esquecido a chave. Isabel não costumava receber visitas. A vida em Londres era um tanto solitária, mas ela continuava com seu propósito.

Ao abrir a porta ela olhou para o chão e reconheceu as botas prateadas, quem estava recostada na soleira da porta era sua nova melhor amiga. Ela carregava uma sacola na mão. Ao entrar na casa, disse que foi mandada pelos Deuses e astros para fazer um convite à Isabel. A cantora, com seu sorriso lindo - tão aberto que mostrava quase todos os dentes, falou que estava com um projeto novo, iria lançar carreira solo e queria Isabel com ela para fazer o figurino de suas performances, que não eram nada simples. Precisava da ousadia de Isabel. Depois do convite feito e aceito, ela entregou a sacola de plástico para a amiga e nela tinha uma tinta vermelha marroquina.
– Trouxe para você pintar meu cabelo. A partir de hoje eu vou ser ruiva! Quero sentir a sensação de andar com um eterno sol na cabeça - disse Rita.

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Silvana Righi

E-mail: righilealsilvana@gmail.com

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